Diante dos cada vez mais frequentes escândalos na política, sempre nos perguntamos sobre se haveria um tipo de ética que mais se adequaria à práxis da atividade política? Ou será que o exercício da política não é compatível com a ética?
As questões morais estão sempre presentes em nosso cotidiano
e guiam as ações dos indivíduos, sejam elas direcionadas para o bem ou para o
mal. Mas o que buscamos entender é se o exercício da política tem de afastar,
necessariamente, valores morais. Não podemos perder de vista o fato de que o
comportamento ético dos políticos não pode ser vislumbrado sob o prisma de um
moralismo abstrato, que está restrito à esfera privada, mas relacionado com um
moralismo real mais amplo, vez que está sempre a afetar a coletividade.
Importa esclarecer, ab initio, que o estudo da ética
comporta distinções em relação ao estudo da moral, posto que esta diz respeito
a um conjunto de normas, aceitas livre e conscientemente, que regulam o
comportamento individual dos homens, ou seja, os princípios morais pressupõem
regras de ações individuais materializadas em realidades históricas concretas.
Já o estudo da ética é mais abrangente, pois busca entender o comportamento
moral dos homens quando inseridos em sociedade, relacionando-se, portanto,
intimamente, com a filosofia, vez que procura encontrar a fundamentação das
questões que lhe são colocadas.
Mesmo diante dessas distinções, no presente artigo,
empregaremos os termos “moral” e “ética” indistintamente. Explicamos o porquê:
a palavra “ética”, procedente do grego, significa “morada”, “lugar em que
vivemos”, só posteriormente passou a ter como significado “o caráter”, o “modo
de ser”; a palavra “moral”, por sua vez, procedente do latim “mos” ou “moris”,
que a princípio significava “costume”, passou a ter também o significado de
“caráter” ou “modo de ser”. Nesse sentido, ética e moral têm significados
etimológicos semelhantes, reportando-se a tudo aquilo que se refere ao modo de
ser ou caráter resultantes da prática de hábitos bons. Por conseguinte,
considerando que, cotidianamente, fala-se em atitude ética para designar
atitudes moralmente corretas, não vale à pena, no presente contexto,
diferenciar ou tentar impugnar um uso que já se faz tão difundido.
Em continuidade, a busca do entendimento sobre se a ética
deve estar ou não presente na política leva a que nos reportemos de logo a
Maquiavel, que inovou ao observar atentamente a política como um campo de
estudo independente. Veremos que em sua obra “O Príncipe” a política não é mais
pensada em termos de ética e de religião, o que provocou uma ruptura tanto com
o pensamento dos clássicos grecoromanos, quanto com os valores cristãos da
Idade Média. A política passou a ser vista com mais realismo e ceticismo em sua
clássica obra, vez que o autor buscava demonstrar, em cada capítulo, para o
Magnífico Lourenço de Médici como a política deveria ser exercida e como tirar
proveito da fortuna, da virtù, da força militar no exercício do poder.
A partir de então, passou a política a ser vista como uma
realidade totalmente objetiva, e que, portanto, teria que ter leis próprias
consentâneas com o cotidiano dos indivíduos. Destarte, para se conseguir poder
pleno, legítimo e duradouro, as situações práticas faziam com que os meios
justificassem os fins, mesmo que desconsiderando por completo questões éticas
concernentes ao exercício da política. A partir daí, Maquiavel torna pública e
memorável sua célebre e polêmica frase: “Os fins justificam os meios”. Ações,
as mais antiéticas possíveis, eram justificadas, contanto que o objetivo de
manter-se no poder fosse alcançado.
A despeito das críticas a ele direcionadas, o que
proporcionou que seu nome se tornasse adjetivo de coisa má (maquiavélico,
maquiavelismo), o autor, a nosso ver, simplesmente retratou a realidade na
política de sua época, buscando em todo momento orientar o seu príncipe sobre o
que era bom ou mal para o exercício da política e para a manutenção no poder.
Para ele, a ação humana vinculada à política segue um caminho e as normas
morais seguem outro.
Mas é importante que se diga que, já na antiguidade grega,
havia preocupações com questões concernentes à moral e à honestidade. Cícero,
por exemplo, em sua obra De officiis, afirmava que havia uma honestidade
intrínseca, sustentando que aquilo que se contradiz com a honestidade não
poderia ser útil ao homem que busca viver em conformidade com a norma natural
do bem. Maquiavel, contrariamente ao que afirmara Cícero, colocou, mais
realisticamente, que a honestidade, em si, é um mito e que, muitas vezes,
faz-se necessário se libertar dela para exercer ações que a moral ordinária
reprova, com o fim de criar e manter condições de vida humana autêntica,
fundamentada na liberdade e na certeza que só leis equitativas podem buscar.
Afastada da moral e reduzida à técnica de exercício de poder
legítimo, a teoria maquiavélica vem sendo, ao longo dos anos, veementemente
criticada e tida como um modelo imoral de prática do poder. Tomando como
exemplo o caso do Brasil, infelizmente, a prática política vem desde os tempos
do Império seguindo à risca esse modelo imoral teorizado por Maquiavel, tão
criticado, mas seguido, mesmo que camufladamente. O que vemos hoje são
escândalos e mais escândalos sem soluções jurídicas éticas e que dão margem,
ante a impunidade reinante, ao cometimento de outras atrocidades éticas, tudo
com a justificativa da manutenção e exercício do poder
Em termos práticos
, o escândalo do Mensalão coloca-nos a refletir sobre uns problemas que as
afirmações maquiavelianas encerram em si, quais sejam: o que se pode e o que
não se pode fazer para atingir determinado fim? Se se pensa que o fim é justo,
tudo se justifica? No caso em comento, a finalidade buscada era a aprovação de
projetos de leis e medidas provisórias do poder executivo federal, sem maiores
questionamentos. O meio utilizado foi o pagamento de mensalidades (mensalão)
para congressistas, a fim de conseguir a adesão necessária. A ética e o decoro parlamentar
foram novamente relegados, como em tantas outras vezes.Isso demonstra que a
realidade política em que estamos inseridos é bem mais complicada e antiética
do que podemos imaginar.
Vivemos distantes daquela situação imaginada por Cícero de
uma ordem natural do bem e da honestidade intrínseca do ser humano. Estamos,
mesmo, mais próximos da realidade cruel retratada por Maquiavel, na qual o
paraíso, o bem e a honestidade estão cada vez mais distantes de nós.
A falta de ética na política tem gerado uma corrupção
desenfreada, o que incrementa a miséria, as mazelas e desigualdades sociais,
contrariando a visão evolucionista de Marx, no sentido de que a humanidade
marcharia sempre numa direção progressista. Às vezes pensamos que estamos regredindo,
pois diante de tantas lições obtidas com a história da humanidade, uma vez que
a questão da relação entre a moral e a política é um antigo problema colocado à
reflexão moral (tão antigo quanto a origem das sociedades políticas), ainda nos
deparamos com tantos desmandos e falta de ética numa atividade essencial para o
Estado, e, por conseguinte, para toda a coletividade, que é a política.
A análise da política sempre nos leva, na realidade, a um
debate entre fins e meios. Sendo legítimos os fins, pode-se fazer uso de
quaisquer meios, mesmo que moralmente repreensíveis? Partindo do pressuposto de
que a política é julgada pelos seus resultados, poder-se-ia, então, fugir de
julgamentos morais?
Norberto Bobbio, em sua obra “Elogio da serenidade e outros escritos
morais” ao falar sobre a solução dualística proposta, mesmo que não
literalmente, por Maquiavel, segundo a qual “O fim justifica os meios”, colocou
que o dualismo está baseado tanto nas ações finais, que têm valor intrínseco,
quanto nas ações instrumentais, que têm valor enquanto servem para o
atingimento de um fim determinado. Para ele não há teoria moral que não
reconheça esse dualismo, referindo-se à distinção weberiana segundo a qual há
ações racionais referidas a valor (wert-rational) e ações racionais referidas
ao fim (zweckrational).
O mesmo Bobbio, numa perspectiva do rigor moral kantiano,
coloca que “em geral numa moral do dever, a consideração de um fim externo à
ação não só é imprópria, mas também é impossível, porque a ação, para ser moral,
não deve ter outro fim que o cumprimento do dever, que é precisamente o fim
intrínseco à própria ação” Nessa linha de entendimento, vê-se que em Kant as
ações ditas instrumentais têm de ser praticadas sob uma perspectiva do
cumprimento do dever moral, mesmo que o fim desejado não seja alcançado.
Não vemos, no entanto, como dissociar fins e meios em termos
de práxis política, vez que as ações meio, no mais das vezes, são praticadas
sem o intuito de cumprimento do dever moral, mas sempre com o fito de consecução
de um fim desejado no meio político, que pode ser escuso ou não. Numa pior
situação, nem os meios nem os fins justificam-se.
Maquiavel enfatizou, numa passagem de Discursos: Comentários
sobre a primeira década de Tito Lívio, que “Quando é necessário deliberar sobre
a saúde da pátria, não se deve deixar de agir por considerações de justiça ou
injustiça, humanidade ou crueldade, glória ou ignomínia. Deve-se seguir o
caminho que leva à salvação do Estado e à manutenção de sua liberdade, rejeitando-se
tudo o mais”. Quis ele dizer com isso que “A salvação do estado é a lei suprema
(salus rei publicae suprema lex)”.
Dessa maneira, a ação política deve ser vista, na ótica
maquiavélica, em relação à necessidade de salvação da pátria, ou seja, objetiva
um bem específico, e não sob o ponto de vista de critérios de julgamento
pertencentes à moral comum. Kant, por sua vez, mesmo que em detrimento da
coletividade, sustentou o cumprimento do dever com base em uma ação que possa
ser considerada moral. Quem estaria com a razão?
Pensamos que, a despeito de a ação política demandar a
pronta atuação no que diz respeito à salvação da pátria em perigo, à manutenção
da grandeza da nação, enfim, à saúde da sociedade tal como preconizado por
Maquiavel, ela não pode ficar afastada de uma ordem ética austera, tal qual a
defendida por Kant. Mas, o problema que se põe é o de como conciliar o
atingimento de fins essenciais à Nação com as práticas éticas desejáveis no
exercício da política.
Cremos, firmemente, que mesmo com essas dificuldades, a
política não pode ser autônoma com relação à ética, pois isso provoca uma
constante instabilidade social e uma perversão dos valores morais, de forma que
tudo pode ser feito e até os mais escabrosos casos de corrupção passam a serem
vistos com certo ar de normalidade não só no meio político, como também pela
própria coletividade que, em última análise, é a maior prejudicada pela
corrupção política. Daí o dizer popular “Rouba, mas faz”.
Para ratificar o entendimento de que não há como desvincular
a ética da política, Aristóteles deixou à humanidade uma lição no sentido de
que o maior bem individual, que em sua opinião era a felicidade, só seria
passível de ser alcançado em uma polis dotada de leis que fossem consideradas
justas, e para que isso acontecesse os políticos, no exercício das atividades
que lhes eram próprias, teriam de ser pessoas virtuosas, no sentido moral,
agindo sempre com prudência na tomada de decisões.
Diante dessas considerações, acreditamos que o exercício da política não pode estar dissociado da ética. Aí nos reportamos à mesma indagação inicialmente colocada: haveria uma ética ideal que pudesse servir de parâmetro para a atuação política?
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